Vestido de noiva - Análise
O universo dramático de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, é a
classe média carioca nas imediações dos anos quarenta. Nessa sociedade,
predomina a hipocrisia, os preconceitos e os símbolos eleitos pela
cultura judaico-cristã como eternos em relação à família e ao casamento.
O peça inicia com buzina de automóvel, barulho de derrapagem
violenta, vidraças partidas, sirene de ambulância. O cenário é dividido
em três planos, que o autor denomina: alucinação, memória e realidade.
Os sons ouvidos referem-se ao atropelamento de Alaíde, que é levada a um
hospital.
O plano da realidade encena a luta de Alaíde contra a
morte, em estado de coma, na mesa de operação, bem como os
acontecimentos que sucedem o atropelamento: a movimentação dos
repórteres, a reclamação de uma leitora de um jornal sobre o abuso de
velocidade dos automóveis, a conversa do marido, Pedro, com os médicos, a
morte da protagonista, o velório, o luto dos parentes, e finalmente o
casamento de Pedro com Lúcia, irmã de Alaíde.
Os planos da
memória e da alucinação apresentam no início da peça uma certa
definição, para irem-se interpretando à medida que a ação evolui. Esses
dois planos são projeções exteriores do subconsciente de Alaíde, uma
mulher inconformada com a condição feminina na classe média alta
carioca, o que provoca nela um desejo irresistível de transgredir: como
se tentasse realizar-se adotando as regras de um jogo adverso, ela seduz
todos os namorados da irmã, e acaba casando-se com o último deles,
Pedro. A irmã promete vingança, e, depois de algum tempo, quando o
casamento entra naquela fase de tédio, trama com Pedro a maneira mais
extremada de descartar Alaíde: seu assassinato.
Alaíde, nos dias
que antecedem o acidente, parece desconfiar que estava jurada de morte,
e, enquanto definha na sala de cirurgia, tenta reconstruir em sua mente
os acontecimentos passados, misturando-os ao seu delírio, à satisfação
dos desejos reprimidos.
O principal símbolo da libertação
feminina é para ela Madame Clessi, uma prostituta do início do século
que havia residido na casa em que então moravam seus pais. Diante do
propósito dos pais de incinerarem os pertences da cafetina que haviam
ficado no sótão da casa, Alaíde consegue resgatar o diário dela, e fica
conhecendo detalhes de sua trajetória, complementados com recortes de
jornais da época encontrados na Biblioteca Nacional.
Em sua
alucinação, misturada com a memória, Alaíde encontra na figura de Clessi
apoio para a reconstrução dos fatos passados e da revelação
subconsciente de seus desejos, entre os quais o assassinato de Pedro,
como retaliação à trama macabra que ele perpetrara de acordo com sua
própria irmã.
Neste universo social, a permissão da vivência
sexual para a mulher só ocorre de uma entre duas maneiras: ou ela se
casa de acordo com os preceitos religiosos e sociais, ou ela transgride
tudo, tornando-se prostituta. No caso de Alaíde, ela acaba conseguindo
ter acesso ao sexo na vida real e uma tentativa no subconsciente, em sua
amizade com Clessi.
Inconformada com as convenções sociais
repressoras da mulher, Alaíde não consegue em vida opor-se a elas, mas
consegue manipular as pessoas com seu poder de sedução. Perto da morte,
seu desejo de transgressão toma corpo e salta aos olhos nas cenas em que
se torna amiga da prostituta e consegue inclusive matar, com a maior
frieza, o marido traidor.
Os imortais
Ninguém
presta, nesta peça: Alaíde é neurótica e oportunista, Pedro e Lúcia são
presumidos assassinos e hipocritamente se casam, com o consentimento dos
pais de Lúcia e da inexpressiva mãe de Pedro.
Alaíde é a
protagonista de Vestido de Noiva. É uma mulher insatisfeita e
inconformada com a condição feminina. Seduz os namorados da irmã como
uma tentativa de auto-afirmação, que a faz parecer melhor aos próprios
olhos. É como ela diz a Lúcia, em tom de provocação: "Eu sou muito mais
mulher do que você - sempre fui! Após conquistar Pedro, que se torna seu
marido, demonstra um certo desinteresse e frustração pela vida de
casada, ao mesmo tempo em que se sente ameaçada de morte por Pedro e
Lúcia. O atropelamento é um desfecho trágico da tensão dos últimos dias
da protagonista, e tanto pode ser suicídio como acaso ou assassinato. Em
seu delírio e lembranças, reconstrói no subconsciente as injustiças de
que se julga vítima e revela seu fascínio pela vida marginal de Madame
Clessi.
Lúcia, irmã de Alaíde, aparece em quase toda a peça como
Mulher de Véu. É uma pessoa também insatisfeita, incompleta, que vive
atormentada pelo sentimento de ter sido passada para trás pela irmã.
Parece ter conseguido uma grande vitória com a morte de Alaíde e seu
casamento com Pedro, mas as cenas finais sugere que ela não estará
melhor em seu casamento do que Alaíde em seu túmulo.
Pedro é o
elemento dominador, é quem manipula as mulheres para conseguir o que
quer. Namora Lúcia inicialmente, deixa-se seduzir por Alaíde, com quem
se casa pela primeira vez, e depois concebe um plano macabro de eliminar
a esposa para retornar aos braços da irmã. É o industrial bem sucedido,
que representa o bom partido para as moças casadoiras que conseguirem
fisgá-lo, mesmo sabendo que viveram à mercê do macho opressor.
Madame
Clessi é a prostituta do início do século que povoa a mente de Alaíde,
desejosa de viver um mundo de sensações picantes. Ela havia residido na
casa de Alaíde décadas atrás, e os pais da protagonista resolvem queimar
seus pertences, alguns dos quais são salvos, inclusive o diário. Clessi
representa (para Alaíde) o ideal de mulher liberada, que agride a
sociedade hipócrita que Alaíde nega, mas na qual ela transita.
Os
demais personagens desempenham papéis secundários, como o namoradinho
adolescente de Clessi, que a assassina com uma navalhada, e os pais de
Alaíde e Lúcia e a mãe de Pedro, que representam a classe média
conformada e deslumbrada com as convenções sociais, que devem ser
preservadas.
Temática e símbolos
Partindo do
princípio de que as relações sociais são perversas, todas as atitudes
das pessoas revelam a hipocrisia, a competição desleal, os desejos
proibidos, o conformismo imbecilizado ou o inconformismo agressivo,
enfim, é um universo de obsessivo pessimismo.
Todas as imagens e
símbolos que emergem da peça convergem para essa amarga concepção da
existência, sem nenhuma surpresa, com pouca sutileza, de maneira bem
clara, em que pese a manifesta intenção de ironizar símbolos sagrados à
cultura judaico-cristã. Assim Vestido de Noiva que deveria simbolizar a
virgindade, a ingenuidade de sentimentos, a paixão pelo noivo com o qual
ocorrerá a união sob a benção de Deus e dos homens, nos mostra um
cenário completamente a este apenas descrito e acaba dessacralizando a
pureza e a castidade para se tornar a representação das discórdia, da
competição, e, a considerar o inequívoco desfecho da peça, em que a
marcha fúnebre se sobrepõe à marcha nupcial, termina por adquirir a
conotação de mortalha.
As outras imagens também convergem para o
mesmo universo simbólico, como o bouquet, espécie de troféu às avessas e
metáfora de um casamento destinado ao fracasso, e a aliança - "grossa
ou fina, tanto faz" nas palavras de uma prostituta -, ao invés de
celebrar a união do casal, funciona como índice de disputa, rivalidade,
ameaça de morte.
A mulher de véu também se constitui numa imagem
de pessimismo. É a mulher que não se revela, mas está sempre pronta a
dar o bote, em seu desejo de vingança. É a retaliação sempre presente,
que Alaíde só consegue identificar claramente ao final do segundo ato.
Provavelmente será a próxima vítima do marido.
(...)
Madame Clessi: Quer falar comigo?
Alaíde (aproximando-se, fascinada): Quero, sim. Queria...
Madame Clessi: Vou botar um disco. (Dirige-se para a invisível vitrola, com Alaíde atrás)
Alaíde: A senhora não morreu?
Madame
Clessi: Vou botar um samba. Esse aqui não é muito bom. Mas vai assim
mesmo. (Samba surdinando) Está vendo como estou gorda, velha, cheia de
varizes e de dinheiro?
Alaíde: Li o seu diário.
Madame Clessi (cética): Leu? Duvido! Onde?
Alaíde (afirmativa): Li, sim. Quero morrer agora mesmo, se não é verdade!
Madame Clessi: Então diga como é que começa. (Clessi fala de costas para Alaíde)
Alaíde (recordando): Quer ver? É assim... (Ligeira pausa) "Ontem, fui com Paulo a Paineiras"... (feliz) É assim que começa.
Madame Clessi (evocativa): Assim mesmo. É.
Alaíde (perturbada): Não sei como a senhora pôde escrever aquilo! Como teve coragem! Eu não tinha!
Madame Clessi (à vontade): Mas não é só aquilo. Tem outras coisas.
Alaíde
(excitada): Eu sei. Tem muito mais. Fiquei!... (Inquieta) Meu Deus! Não
sei o que é que eu tenho. É uma coisa – não sei. Por que é que eu estou
aqui?
Madame Clessi; É a mim que você pergunta?
(...)
Disponível em :http://www.saturei.com/resumos/vestido_de_noiva.php acessado em janeiro de 2008
FONTE: http://franciscomuriel.blogspot.com/2008/08/noces-de-vestido-de-noiva.html
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