quinta-feira, 8 de março de 2012
quinta-feira, 1 de março de 2012
PRANTO DE MARIA PARDA - GIL VICENTE - 1522
HUMANISMO
Humanismo
é o nome que se dá à produção escrita histórica literária do
final da Idade Média e início da Moderna, ou seja, parte do século
XV e início do XVI, mais precisamente, de 1434 a 1527 . Três
atividades mais destacadas compôs esse período: a produção
historiográfica de Fernão Lopes, a produção poética dos nobres,
por isso dita Poesia Palaciana, e a atividade teatral de Gil Vicente.
É
interessante ressaltarmos que o termo Humanismo é polissêmico,
podendo ser considerado sob vários enfoques, ao mesmo tempo
distintos e interdependentes. Para os limites desta aula, interessa
nos o seu sentido mais estrito ou histórico, entendido enquanto o
movimento literário e cultural de uma época marcada por profundas
transformações na sociedade européia.
O
Humanismo, segunda Escola Literária Medieval, também conhecido como
Pré-Renascimento ou Quatrocentismo, corresponde ao período de
transição da Idade Média para a Idade Clássica. Tem como marcos
iniciais as nomeações de Fernão Lopes como Guarda-Mor da Torre do
Tombo (local onde se guardavam os documentos oficiais), em 1418 e,
como Cronista-Mor do Reino, em 1434, quando recebeu de D. Duarte, rei
de Portugal, a incumbência de escrever a história dos reis que o
precederam.
Historicamente
o Humanismo foi um movimento intelectual italiano do final do século
XIII que irradiou-se para quase toda a Europa, isto porque, após a
queda de Constantinopla em 1453, muitos intelectuais gregos
(professores, religiosos e artistas) refugiaram-se na Itália e
começaram a difundir uma nova visão de mundo, mais antropocêntrica,
indo de encontro à visão teocêntrica medieval. Entre as principais
idéias humanistas estavam:
•
retomada
da cultura antiga, através do estudo e imitação dos poetas e
filósofos greco-latinos;
•
revalorização
da filosofia de Platão, especialmente no que diz respeito à
distinção entre o amor espiritual e o carnal – neoplatonismo.
GIL
VICENTE
Gil
Vicente (1465? — 1536?) é
geralmente considerado o primeiro grande dramaturgo português, além
de poeta de renome. Há quem o identifique com o ourives, autor da
Custódia de Belém, mestre da balança, e com o mestre de Retórica
do rei Dom Manuel. Enquanto homem de teatro, parece ter também
desempenhado as tarefas de músico, a tor e encenador. É
frequentemente considerado, de uma forma geral, o pai do teatro
português, ou mesmo do teatro ibérico já que também escreveu em
castelhano - partilhando a paternidade da dramaturgia espanhola com
Juan del Encina.
A
obra vicentina é tida como reflexo da mudança dos tempos e da
passagem da Idade Média para o Renascimento, fazendo-se o balanço
de uma época onde as hierarquias e a ordem social eram regidas por
regras inflexíveis, para uma nova sociedade onde se começa a
subverter a ordem instituída, ao questioná-la. Foi, o principal
representante da literatura renascentista portuguesa, anterior a
Camões, incorporando elementos populares na sua escrita que
influenciou, por sua vez, a cultura popular portuguesa.
PRANTO
DE MARIA PARDA
O
Pranto de Maria Parda
é uma das mais célebres peças
de Gil Vicente. Intencionalmente, o grande dramaturgo, retratou a
realidade das classes pobres de Lisboa, no Século XVI. Contrariando
os discursos que enalteciam e louvavam a beleza e opulência da
capital de um imenso império, Gil Vicente procura desvelar a
vivência dos negros e mestiços chegados e nascidos na metrópole
que, em Quinhentos, calcula-se que perfaziam 10% da população de
Lisboa. Muitos eram alcoólatras, mal cristianizados, deprimidos pela
subvida serviçal e sem perspectivas de futuro a que estavam votados.
Vêm-se carnalizados na figura literária de Maria, perspicaz e
corrosiva observadora da sociedade, amante do vinho carrascão.
Podemos imaginar apenas o impacto que o monólogo terá tido na corte
e junto do monarca; quando se viu defronte de atrevida mestiça, da
base da pirâmide social, para mais mulher, mais a mais sexualmente
livre, assumir, entre canadas (litros) de vinho, uma das mais lúcidas
e desesperançadas críticas à sociedade dos "fumos da Índia”.
Gil
Vicente foi genial e arrojado, mas quinhentos anos depois já o
império se foi, já nada diz. Na linha de exigência a que acostumou
o seu público. Para lá da coisificação compulsiva, uma criatura
parda; simultaneamente pária, perdida e deambulando com desespero na
solidão, procurando uma voz que não responde: - "Não sei que
faça..." – diz. "Quem quer fogo, busque lenha!" –
troça de si. Opressão auto infligida é um retrato e metáfora da
fragilidade humana.
Maria
Parda, poderosa
sedutora
cheia de espírito, sorumbática
neurastênica,
não é fácil de ser interpretada.
SÁTIRA
E DATAÇÃO
Se
na disposição do PMP em livro não se acham provas conclusivas
respeitantes ao estatuto da obra, procuremo-las no conhecimento das
circunstâncias que envolveram a sua produção.
Vem
a obra intratextualmente datada de 1522:
na
triste era de vinte
e
dous desd’o nascimento
Na
cronologia vicentina terá sido composição de uma época em que o
autor já não fazia os autos de El-rei D. Manuel (falecido em
Dezembro de 1521) e ainda não fazia os de D. João III. Luciana
Stegagno Picchio fala dum Gil Vicente desempregado do paço, devido
ao luto, e atuando nas ruas de Lisboa, mais perto do povo. Em 1521 já
Gil Vicente teria composto uma comédia para o então príncipe D.
João, a de Rubena, e nesse mesmo ano de 22 estaria talvez a compor o
D. Duardos para enviar e oferecer ao mesmo D. João. Pouco antes no
final de 1521, as trovas relativas à aclamação do novo rei e,
sobretudo, as cópias atribuídas fantasiosamente, pela invenção do
autor, a certos membros da nobreza, do clero e do município de
Lisboa, eram com certeza destinada ao soberano, pois vão carregadas
de conselhos para a governação, do tipo dos que figuram nas artes
de reinar. Nessas cópias, a tônica é posta na necessidade de o
jovem monarca proteger o seu povo, o gado arrepiado, as ovelhas
suspirando / sem abrigo, os lavradores, os povos menores, ou seja,
esta manada a que o rei deverá dar pasto.
porque
o povo coitado
não
coma pão de dolor
E
a última fala trovada é atribuída à própria personagem Povo.
Frei
Luís de Sousa viria a descrever com veemência, nos seus Anais a
esterilidade e a seca de 1521, assim como a fome que Lisboa viveu nos
finais desse ano e ao longo do seguinte. Em começos de 1522
morria-se de fome nas ruas da capital, tal como Maria
Parda
vai morrer de sede. O cronista refere-se igualmente ao sofrimento do
jovem rei com a desgraça, e à medida que tomou para atenuar a
calamidade social em Lisboa.
No
PMP, os seis taberneiros que recusam fiar o vinho poderão
representar um mercado lisboeta sovina, nos antípodas da caridade e
do espírito das Misericórdias em que se empenhou a rainha D. Leonor
e, com ela, o próprio Gil Vicente. Por encomenda da rainha, para
ajudar as suas instituições e o espírito de caridade cristã que
as sustinha, realizara Gil Vicente uma ação teatral sobre o milagre
de São Martinho, em 1504, na igreja das Caldas, na procissão do
Corpo de Deus. Há parentescos entre o auto de São Martinho e o PMP,
e este último apresentam traços que podem ser vistos como uma
inversão parodística e carnavalesca do primeiro: tal como Maria
Parda o pobre (figura do próprio Cristo) começa por lamentar ou
prantear a sua falta, a sua miséria, e também pede. Se São
Martinho, na boa ação que realiza em cena, tematiza a virtude da
caridade institucionalizada (as Misericórdias), os taberneiros
poderão representar o vício avareza e não apenas a crise
econômica.
Um
dos taberneiros é um cristão-novo e todos usam sentenças
economicistas, relativas à poupança e aos preços. Ao colocar
programaticamente dois provérbios em cada uma das cópias
correspondente a cada uma das falas dos taberneiros, Gil Vicente
conjuga oportunamente, como é regra na sua produção artística, o
virtuosismo
retórico do constrangimento poético,
a que se obriga, com a caracterização judaizante e materialista das
personagens dos vendedores.
As
prosopopeias animais são tradições medieval. No PMP, mais realista
e usando de outra invenção ou estratagema ficcional, igualmente
tradicional, é digna de nota a multiplicação das referências a
preços e medidas: tão alta está a canada, de crescerem as medidas,
cento e um cinquinho, a dezaseis o dão, sete mil custou à pipa,
etc.
Esta
será uma hipótese de sentido para a obra vicentina: a
sátira à carestia, a queixa pela fome, o apelo à caridade.
Outra se lhe pode opor: em época de escassez, Maria
Parda representa o desgoverno, o gasto excessivo com vícios
terrenos, ou mesmo o pecado;
os taberneiros, por oposição, são figuras que representam uma
certa prudência, baseada na sabedoria proverbial popular. A
morte final de Maria Parda seria como que o castigo da sua
dissipação.
A
haver sátira, o PMP terá sido composto nos começos de 1522 ou no
fim do mesmo ano, pois é obra de Inverno: Maria Parda diz que
despejei nestes frios, referindo-se ao vinho já bebido por si, o que
lembra um Inverno adiantado. Se realmente o PMP se prestou à
atividade teatral, a determinação da época do ano não é inútil,
dado que o teatro vicentino procedia quase sempre de festas e
celebrações, querem extemporâneas e pontuais, quer cíclicas as de
natureza agrária e religiosa.
Em
finais de Dezembro de 1522 andava a Câmara a dialogar com o rei
acerca da imposição nova que até então vigorava sobre o vinho, e
que D. João III resolveu retirar (a 30 de Dezembro), mas que a
Câmara propôs se mantivesse por troca com o imposto ou a dedução
sobre o pão importado. Alegavam os vereadores que a imposição nova
sobre o vinho, do tempo de D. Manuel, era mais fácil de suportar que
a dita necessidade do pão, já que na cidade de Lisboa existia
abastança de vinho e assim em todas as comarcas e tal imposição
havia sempre dedução leve de sofrer aos vereadores. Terá o PMP
algo a ver com este negócio? É muito possível, sobretudo porque o
referente Lisboa está bem patente ao longo da obra. Mas se alastrava
a abundância de vinho no final de Dezembro de 1522, que sentido
tinha um pranto sobre a sua falta, ainda que face cioso e alegórico?
Mais parece obra de Quaresma ou de Carnaval, época que se iniciava
nas matinas do Natal (de 1521, neste caso) e percorria as festas de
Janeiro até a Quaresma, incluindo a quarta-feira de Cinza e a
Mi-carême.
Ao
tematizar a falta e a carestia do vinho, o PMP continuava a fazer
sentido em determinadas circunstâncias. Ao significar, por meio do
vinho, a escassez e a falta, quer do pão, quer de algo essencial à
sobrevivência humana, o PMP continua e continuará a fazer sentido.
PRANTO
/ DIÁLOGO / TESTAMENTO
Embora
seja conhecida como o Pranto de Maria Parda, a
obra é compósita,
pois integra
três gêneros
ou tipos enunciativos imediatamente reconhecíveis: o pranto, nomeado
na rubrica, o diálogo com provérbios e o testamento, também
nomeado em rubrica interlinear. São
catorze estrofes de pranto:
uma delas inserida no meio do diálogo, doze
de diálogo,
no gênero palaciano da pergunta (pedido) / resposta, e quinze
estrofes de testamento,
este, tal como o pranto, na voz exclusiva de Maria Parda. Dois
monólogos ligados por um diálogo.
Os autos vicentinos apresentam-se frequentemente como verdadeiros
mosaicos de gêneros, numa abundância manuelina sem precedentes e
sem sucessão na literatura portuguesa.
O
pranto ou lamentação é aqui carnavalizado, pois exerce-se sobre a
morte do vinho, e não sobre a do rei, de um nobre, ou do ser amado
(lamentação amorosa). Do pranto ou complacente goliardesca,
frequente noutras literaturas europeias, encontramos um espécime
feito por Anrique da Mota a um clérigo, com uma estrutura tripartida
semelhante à vicentina. Figura ele no Cancioneiro Geral que contém
também prantos sérios à morte do príncipe D. Afonso e do rei D.
João II. Gil Vicente abriu com uma lamentação amorosa a comédia
Rubena, de 1521, e esboçou dois curtos prantos fúnebres no interior
do seu Romance à morte de D. Manuel, também de 1521, nas vozes da
Infanta e da Rainha estrangeira. Mas o assunto báquico (bacanal) do
PMP é único na obra vicentina __ uma experiência do autor. Há que
não esquecer que o velho pranto, ou planh
ou
planctus,
é um dos gêneros poéticos mais próximos do teatro, não só pela
atuação ilógica a ele inerente, mas também pela sua inserção
ritual nos cortejos fúnebres que se seguiam à morte de príncipes e
de reis.
Quanto
ao outro monólogo dramático, o
testamento,
ele é amostra isolada na produção de Gil Vicente __ outra
experiência do autor. Mas é larga e chega aos nossos dias a sua
tradição europeia, em contrafação paródica. Gil Vicente cumpre
as regras e fórmulas deste gênero notarial (datação, itens,
encomenda da alma, nomeação dos testamenteiros, disposições para
o funeral, etc.).
O
diálogo, de doze cópias, onde alternam as vozes de Maria Parda e
dos seis taberneiros, lembra e não lembra os diálogos contidos nos
autos. Como neles, surgem personagens tipificadas; mas não me
recordo de encontrar mais nenhum diálogo vicentino sujeito à regra
numérica de uma cópia por fala. De notar ainda outras regularidades
que contribuem para a estilização dessa parte mediana do PMP,
tornando-a, tal como as duas restantes que a emolduram, textos
autônomos, que poderiam figurar numa antologia poética. Uma dessas
regularidades consiste na presença obrigatória de dois aforismos
(sentença moral) em cada fala-estrofe dos seis taberneiros; outra,
na referência à morte em cada fala--estrofe de Maria Parda. O
virtuosismo de retóricas fazia parte dos hábitos da produção
poética cortesã; a mestria, a dificuldade lúdica e a ostentação
versificatória eram muito apreciadas e louvadas num trovador. E Gil
Vicente soube mostrar-se trovador exímio em muitos dos trechos que
inseriu nos seus autos. Este diálogo com provérbios pertence ao
gênero perguntas e respostas das tenções poéticas dos serões
palacianos, assim como ao sistema das ajudas e demais jogos florais
escritos ou improvisados nesses serões.
O
artificialismo literário do diálogo denuncia uma intenção
cortesã, e pede um público letrado, mais do que a arraia miúda, um
público leitor, mais do que espectador de teatro. O tipo de humor
não é tão imediato, excessivo e primário como o de outras obras
vicentinas destinadas à representação cênica. Neste sentido, e
paradoxalmente, o diálogo aproximar-se-ia do estatuto poético das
trovas de cancioneiro, enquanto o pranto e o testamento dele se
afastariam.
Convirá
não duvidar das memórias de então, quer as de autor quer as de
ator, e Gil Vicente exerceu ambos os papéis. Também o escudeiro
referido na Aulegrafia de J. Ferreira de Vasconcelos sabia de cor as
trovas de Maria Parda. Se Gil Vicente disse o sermão em Abrantes,
afigura-se-me verossímil que possa ter pronunciado com a sua voz a
fala de Maria Parda, com ou sem o seu corpo de actor (um manequim ou
bonifrate não é de excluir, neste caso). Os mecanismos ou as
técnicas oratórias de memorização estão patentes em ambos os
textos: a rigorosa divisão macrotextual, o uso dos lugares, e a
anáfora sistemática, no início do verso e no da estrofe, quer
literal quer semântica, quer referencial quer discursiva (apóstrofes
às ruas de Lisboa,nomeação dos taberneiros, enumeração das
vontades fúnebres e das zonas de vinho, em parada monumental). Mas o
PMP exige talvez um maior grau de fingimento que o sermão sobre a
peste: neste havia apenas uma fala moral, enquanto naquele Maria
Parda existe como personagem em situação, não só enunciativa mas
também diegética.
UNIDADES
DRAMÁTICAS
Personagens
Maria
Parda é personagem feminina, o que é raro no gênero monólogo
dramático de então. Ela faz parte das comadres vicentinas velhas,
todas personagens de teatro. A linguagem e a sua posição
enunciativa __ um estado elementar de necessidade, uma atitude
pulsional __ assemelham-se às da mãe de Isabel em Quem tem Farelos?
E às velhas do auto da Festa e do Triunfo do Inverno. Maria Parda
sofre ainda a caracterização de beberrona, o que não acontece com
as suas congêneres, sendo suporte de uma série de traços
goliárdicos (devassos) (a solidariedade das tabernas, os seus
queridos manos e manas).
Se
juntarmos tudo o que vai caracterizando Maria Parda obteremos um
conjunto extraordinariamente variado: além do traje (a nudez e o
manto), e da descrição realista do corpo velho e doente, existe a
linguagem
figurativa
(repetições, trocadilhos, exageros, ironia), a mistura
de níveis ou registros
(da retórica cortesã à mais vernácula obscenidade), a
forma arcaizante da segunda
pessoa
do plural
(socorrede-me), as insistências num campo
semântico muito
primário
(comida, doenças, preços, roupa), e uma riquíssima
variedade ilocutória
(lamento, pragas, apóstrofes animizadoras, exclamações, processos
de sedução, pedido, grito, promessa). Note-se que não se trata de
uma personagem de negra, quando muito uma Maria Mulata, pois que não
existe qualquer fórmula específica da língua de preto, já então
codificada. Mas o que fica sem resposta segura é o seguinte: terá
havido um corpo de ator (Gil Vicente?) a representar este corpo?
Se
olharmos de perto cada um dos seis taberneiros, com falas de apenas
nove versos, dos quais três ou quatro são obrigatoriamente ocupados
com provérbios, deparamos com uma caracterização bem concreta de
alguns deles: a Falula mostra-se grosseira, João Cavaleiro é
cristão-novo, Branca Leda só fala de comida. Estes taberneiros
lisboetas funcionam ainda, note-se, como uma espécie de coro que
comenta as súplicas de Maria Parda.
AÇÕES
O
PMP não é apenas uma fala deliberada numa situação ficcional. A
fala vem acompanhada de ações a delinearem um breve enredo, se bem
que simplicíssimo, e essas ações são predominantemente verbais:
1ª
a queixa pelo mau presente, com evocação do bem passado;
2ª
a decisão de pedir fiado;
3ª
o ato de pedir;
4ª
a recusa dos taberneiros (repetição em alternância destas duas
ações, por seis vezes);
5ª
a decisão de morrer;
6ª
a ordenação do testamento.
Todas
as ações ocorrem em presença, tal como o discurso direto das
personagens, e implicam um desfecho no futuro: Maria Parda irá
morrer. Prevalece a mimese e a exibição sobre a revelação, ao
contrário do que acontece em muitos dos monólogos dramáticos
europeus, que são falas narrativas.
Assistimos
a passeios e cortejos de Maria Parda pelas ruas dos bairros orientais
de Lisboa, ou, ao invés, ao desfile dessas ruas, magicamente
convocadas pela aflitiva apóstrofe de Maria Parda ao nomeá-las: Rua
de S. Gião, Travessa de Mata-Porcos, carnicerias, Rua da Ferraria,
Biscainha, etc. Usando máquinas, poder-se-ia fazer rodar diante dos
olhos do espectador cada uma das ruas e tabernas interpeladas em cada
estrofe. Seriam as praças e vielas a passar por Maria Parda e não
esta a atravessá-las. Mas também ela se move, segundo informam
algumas didecássilabas, na seqüência da decisão quero m’ir às
taverneiras (260b): Vai-se a Branca leda, Vai-se a João do Lumiar,
indo pera casa de Martim alho.
Ocorre
aqui o argumento de natureza extratextual a favor da teatralidade
intrínseca desta peça vicentina. A similaridade existente entre
esta estrutura de deslocação cênica e a cerimônia dos prantos
fúnebres na capital, em Dezembro de 1521, quando morreu D. Manuel: o
cortejo desfilava por certas ruas de Lisboa e parava em pelo menos
três lugares definidos, onde se quebravam os escudos (equivalentes
sérios, não carnavalescos, das tabernas que Maria Parda visita); os
trajes eram mantos negros (Maria Parda vai emburilhada numa manta); e
grandes eram as manifestações de dor (não menores que as de Maria
Parda). Vem ao pensamento à comparação entre o PMP e o pranto de
D. Manuel, do qual aquele seria então uma espécie de reverso
parodístico, irreverente, cômico e satírico.
TEMPO
E AUSÊNCIA
Esta
tão acentuada presença contrasta significativamente com o tema da
falta e da ausência. Ausentes os tempos passados e as tabernas da
Lisboa antiga, cheia de vinho; ausentes os tempos futuros de ofícios
fúnebres, no pós-morte, também eles cheios de vinho.
O
que está presente em cena é a ausência, o vazio, e a sede __ seja
no corpo de Maria Parda, ressequido, sem roupa, sem dentes e tão
leve e aéreo, seja no tempo e no espaço: as pipas ocas, e o momento
de necessidade. O que está ausente é o de que Maria Parda
constantemente fala, recordando o passado e incitando a um futuro de
plenitude. Ao nomear a ausência, convoca-a magicamente a uma
presença absorvente, excessiva e sobrerreal: o vinho, os tempos
utópicos de abundância, o espaço lisboeta das tabernas e demais
territórios vinícolas de Portugal. Esta presença fantasmagórica
do vinho agiganta-se no pranto, e sobretudo no testamento, verdadeiro
triunfo do vinho.
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